Comentário ao Acordão sobre Responsabilidade por Factos Ilícitos ou Responsabilidade pelo Risco




Responsabilidade por factos ilícitos ou responsabilidade pelo risco

Sumário do Acordão:
- A obrigação de indemnização do lesado com fundamento em responsabilidade pelo risco não tem como pressuposto necessário a pratica de um facto ilícito pelo lesante, não sendo de incluir no âmbito da remissão do art. 499º do C. Civil o concurso dos pressupostos ilicitude e culpa a que alude o art. 483º.


- As normas do Código da Estrada que proíbem o transporte de passageiros de modo a comprometer a sua segurança ou a da condução, ou fora dos assentos dirigem-se ao transportador, como detentor da direção do veículo e do domínio da ação de transporte;

- Tais normas, diretamente dirigidas à proteção da segurança das pessoas transportadas integram as “disposições legais destinadas a proteger interesses alheios”, variante da ilicitude que, a par da violação de direitos subjetivos do lesado, o art. 483º-1 elege como pressuposto da responsabilidade.

-Perante um tal escopo da norma que proíbe a conduta, ocorrido um acidente mortal causalmente ligado ao transporte de passageiro fora dos assentos, por adquirido se há-de ter estar-se perante um dano produzido no típico círculo de interesses privados que a norma visa tutelar, com a consequente qualificação, como ilícita, da atuação do condutor.

[Ac.  STJ, de 05/07/2009, Proc. nº 24/09.2YFLSB




Comentário:
Debate-se se o acidente é de qualificar no âmbito da responsabilidade por factos ilícitos (responsabilidade subjetiva) ou  pelo risco (responsabilidade objetiva), discutindo-se a verificação casuística  dos conceitos culpa e  ilicitude. Esta discussão é crucial, pois se entendida a verificação de tais requisitos na atuação da parte ou partes, a responsabilidade será considerada por factos ilícitos. 
O Acordão aceitou o  "incumprimento das normas do art. 55º do C. E., então em vigor (DL n.º 114/94, de 3/5), que, como já dito, proíbem o transporte de passageiros de modo a comprometer a sua segurança ou a segurança da condução, bem como fora dos assentos (n.ºs 3 e 4)", consideradas como  disposições da legislação estradal destinadas a proteger a segurança das pessoas transportadas, em que deve incluir-se a integridade física e a própria vida, como expressa a própria norma, bem como, genericamente, a condução como atividade geradora de riscos".
Partindo de tal pressuposto, o tribunal entendeu que tal normativo deve ser  entendido como uma “disposição legal destinada a proteger interesses alheios” (art. 483º, nº 1, CC), cuja violação integra, implicitamente, o pressuposto ilicitude.
Explica o Acordão, "Na verdade, a violação desses preceitos legais não é senão uma forma ou variante da ilicitude, a par da violação dos direitos subjectivos do lesado e assim tratados no mencionado art. 483º. Depois, e quanto aos concretos requisitos de relevância da violação para efeitos de responsabilidade e indemnização já se disse que, destinando-se a proteger a segurança/integridade física dos passageiros, não podem as normas aludidas deixar de haver-se, para além de protectoras de interesses gerais e colectivos atinentes à segurança do tráfico rodoviário, como também, em especial, directa e finalisticamente tutelares da segurança dos concretos passageiros transportados fora dos assentos e, consequentemente, dos respectivo interesse pessoal de preservação da integridade física. Por isso, perante um tal escopo da norma, ocorrido um acidente mortal causalmente ligado ao transporte de passageiro fora dos assentos, por adquirido se há-de ter, também, estar-se perante um dano produzido no típico “círculo de interesses privados que a norma visa tutelar” (cfr. A. VARELA, ob. cit., 558). Assim sendo, a actuação do condutor da viatura, que não impôs o cumprimento da disposição legal, permitindo que a vítima se fizesse transportar na caixa de carga, onde não havia bancos, ao pôr a viatura em circulação de forma que o CC dela caísse pela porta que se encontrava aberta é ilícita, porque violadora dos citados preceitos estradais e do dever de cuidado (omissão do comportamento devido) que o respectivo cumprimento impunha (cfr. PESSOA JORGE, “Ensaio Sobre os Pressupostos da Responsabilidade Civil”, 67 e ss.)".
Quanto ao  requisito culpa,  o qual obriga à  formulação de um juízo de censura, concretizado numa análise de culpabilidade,  apreciado pela diligência de um bonus pater familia, em face das circunstâncias do caso (art. 487º, nº 2, CC), entendeu o Tribunal que: "Do elenco factual provado resulta que, além da predita conduta contravencional (hoje, contraordenacional), o condutor pôs a carrinha em circulação, com a vítima na caixa de carga, sem se certificar, sequer, que a porta estava fechada, sendo certo até que, de forma “temerária e irresponsável”, condutor e vítima executavam a tarefa de distribuição do pão com a porta de trás sempre aberta, aí se fazendo transportar o falecido, contra as ordens da entidade empregadora. Violador das regras de condução, a fazer presumir a culpa em concreto, e imprudente e inconsiderado, revela-se também fortemente censurável, logo culposo o comportamento de do motorista da viatura e da vítima".
Pelo que considerou,  que o acidente e o dano resultaram do concurso de atuações ilícitas e culposas de ambos os intervenientes. 
"Segundo o art. 570º, CC, quando um facto culposo do lesado tiver concorrido para a produção ou agravamento dos danos, cabe ao tribunal determinar, com base na gravidade das culpas de ambas as partes e nas consequências que delas resultaram, se a indemnização deve ser totalmente concedida, reduzida ou mesmo excluída. Daí a necessidade de graduação das culpas. Sendo ambas as condutas culposas, questiona-se se, para efeitos indemnizatórios, devem distinguir-se. Trata-se de proceder à valoração do concurso do facto “culposo” do lesado, como ação livre e consciente representativa dum «acto constitutivo de responsabilidade pessoal», da sua auto-responsabilização, confrontado com o comportamento do motorista, tudo com vista à determinação da medida da sua gravidade. Temos por certo, por um lado, que alguém que se faz transportar na caixa isotérmica duma carrinha de distribuição de pão, cuja porta de trás ia sempre aberta amarrada por um barbante, para ser mais rápida a distribuição, assume uma posição de autocolocação em perigo, mediante a assunção dos riscos próprios dessa circulação objectivamente contravencional, temerária e com especial aptidão para a produção de acidentes como o que está em apreciação. Quando tal suceda, a contribuição autodanosa do lesado, por via da assunção voluntária dum risco, traduzido no perigo típico da circulação na viatura em tais condições, parece-nos óbvia. Do outro lado, e concorrentemente, perfila-se o condutor, também criador imediato do perigo, com conhecimento da exposição voluntária do lesado ao mesmo e da possibilidade de ocorrer o facto danoso. A tudo acresce, a habitualidade dessas condutas, em cooperante tolerância (pelo menos) do condutor, como denunciado pela matéria de facto apurada, mau grado as instruções em contrário da entidade patronal dos intervenientes. Tem-se assim por adequado, perante o quadro disponível, em função da conculpabilidade e contribuição para o facto danoso, fixar a respectiva repartição e responsabilidade em metade para o condutor e outro tanto para a vítima, proporção que a indemnização reflectirá".

Factualismo:
  1.  CC faleceu em 3-06-1997, com 18 anos de idade.
  2. A responsabilidade civil emergente de acidentes de viação, relativamente ao veículo de matrícula UH-00-00, estava, em 3-06-1997, transferida para a demandada seguradora, mediante a apólice nº 90/000000.
  3. CC trabalhava para a empresa “C... & V..., Ld.ª”.
  4.  Como distribuidor de pão.
  5.  O seu trabalho consistia em sair de manhã da empresa pelas 6h00, para distribuir pão pelos clientes, até depois das 9h00.
  6.  Saía com o motorista num veículo ligeiro de carga, com caixa, pertencente à 2ª Ré.
     O CC ia atrás, na parte destinada à carga.
  7. Por vezes, o distribuidor do pão, o falecido CC, para fazer aquele serviço, deslocava-se no interior da caixa, na parte de trás, junto da mercadoria. Na caixa do veículo não havia banco, mas apenas um varão metálico onde o falecido se podia segurar.
     O veículo de matrícula UH-00-00, onde seguia o falecido, na parte dianteira, tinha um banco com três lugares, um para o motorista e dois para acompanhantes.
     Um dos lugares da frente vinha ocupado com caixas de bolos, para virem melhor acondicionados. No dia em que ocorreu o sinistro, apenas levavam pão.
     A porta da caixa do carro - que é a porta de trás - ia sempre aberta, para ser mais rápida a distribuição.  Após ter entregue o pão numa casa, o falecido CC fez-se transportar na caixa isotérmica da carrinha.
  8. Quando o falecido seguia na parte de trás da carrinha a porta ia aberta, amarrada por um barbante.  Com o andamento da carrinha, o CC tombou na estrada, vindo a sofrer, em resultado dessa queda, lesões traumáticas no crânio que foram causa directa e necessária da sua morte.
     Com a morte do CC a autora ficou em estado de choque e esteve uma semana na cama.
     O falecido ganhava cerca de 60.000$00.
  9. Era saudável e cheio de vida, como é próprio da idade.
    CC ajudava os pais, contribuindo com quantias monetárias para o sustento da família.
     A Autora é auxiliar de acção educativa numa escola e o Réu é coveiro, não possuindo outros rendimentos a não ser os do trabalho.
  10. A morte do filho privou-os de receber aquelas quantias.
  11. A Autora, nos dias de hoje, ainda sofre com a morte do filho. Após a morte do filho, a Autora ficou com a sua saúde abalada.   Desde a morte do filho, a autora passou a frequentar médicos e a tomar medicamentos. O falecido caiu do veículo pela porta que se encontrava aberta.  A entidade empregadora do falecido havia-lhe dado ordens para que circulasse sentado nos bancos da cabine, ao lado do motorista, quando procedia à distribuição do pão.  Um dos sócios da Ré interveniente proibira outros trabalhadores de seguirem na parte de trás da carrinha aquando da distribuição do pão.





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